Monday, October 14, 2019

Stanislav Petrov, o soviético que evitou a terceira guerra mundial

A guerra fria foi um delicado período da nossa história, no qual as potências antagonistas (Estados Unidos e União Soviética) buscaram rivalizar em poderio econômico e militar, culminando na derrota do sistema socialista.
No entanto, uma coisa que muitos ignoram é que, no auge da guerra fria, em diversos momentos o mundo chegou bastante próximo de um desastre de proporções bíblicas.
A gravidade da ameaça era tanta que alguns cientistas do Bulletin of the Atomic Scientists criaram um relógio simbólico chamado relógio do juízo final, ou Doomsday Clock, cuja posição dos ponteiros representava o quão perto a humanidade estava da meia-noite, o ponto que simbolizava seu próprio extermínio.
À medida em que uma guerra nuclear entre as duas potências da guerra fria se tornava mais ou menos plausível, os ponteiros do Doomsday Clock mudavam de posição, as vezes para frente, as vezes para trás, sempre sincronizados com os rumores de guerra e os perigos do momento.
Um dos episódios de maior perigo aconteceu em uma noite fria de 26 de setembro de 1983 na União Soviética.
Nesse dia o tenente coronel Stanislav Petrov tinha a incumbência de monitorar os alarmes do espaço russo que alertariam o país em caso de lançamento de mísseis pelos seus adversários.
E numa aparente confirmação das previsões mais sombrias da guerra fria, naquele dia o alarme soou e um dos subordinados de Petrov anunciou: “Senhor, há um míssil nuclear no radar, os americanos estão nos atacando”.
Petrov, frio como só um russo consegue ser, tomou um copo de água e disse: "aguarde, ainda não vamos avisar o alto comando".
O tenente coronel desconfiava de um mal funcionamento no sistema de radar soviético, e assim, teve de tomar uma difícil decisão.
Ocorre que se uma bomba nuclear fosse realmente disparada contra Moscou, o projétil levaria vinte e três minutos para atingir seu alvo. Então nesses vinte e três minutos Petrov teria que avaliar a real seriedade da ameaça.
Petrov considerou que não fazia sentido que os Estados Unidos disparassem um único e solitário míssil contra a URSS, já que o contra-ataque contaria com mais de cem ogivas. Assim, se os Estados Unidos queriam de fato arruinar a URSS, a guerra teria de ser de destruição total, sem dar chances de reação.
Acontece que cinco minutos depois o radar acusou a aproximação de mais dois mísseis, aparentemente confirmando a gravidade da situação, o que fez fervilhar ainda mais os já exaltados ânimos da equipe de monitoramento. Ainda assim, Petrov insistiu para que o alto comando não fosse informado.
Mesmo quase enfrentando um motim, Petrov precisava a todo custo evitar o pânico. Pois uma vez que a elite do partido comunista soubesse o que se passava, ninguém mais agiria racionalmente, e nesse caso a URSS temerariamente poderia dar o primeiro tiro em uma guerra de destruição mútua.
A avaliação do tenente coronel estava certa, e os mísseis norte-americanos nunca chegaram, já que não passavam de um bug no sistema de programação dos radares soviéticos.
Assim, se a humanidade não mergulhou na terceira guerra mundial em 1983, em grande parte isso se deve a Stanislav Petrov.
Mas como você deve imaginar, mérito não é algo com que os socialistas lidem muito bem.
Mesmo que ele tenha salvado suas vidas e seu país, os soviéticos jamais homenagearam Petrov. E isso não era de se surpreender, dado que esse episódio demonstrava que as vezes era melhor tomar as rédeas da situação e deixar a elite do partido comunista de fora do problema.
Além disso, seria simplesmente uma vergonha admitir que a tão elogiada ciência soviética era tão bugada que quase desencadeou o apocalipse.
E falando em apocalipse, vale lembrar que evaporar cidades inteiras não é o único nem o principal motivo de preocupação de uma guerra nuclear.
Na época da guerra fria, um grupo de cientistas liderados por Carl Sagan calculou as consequências de longo prazo que um conflito dessa magnitude teria, e o principal risco destacado pelos pesquisadores foi o surgimento de um inverno nuclear causado pela liberação de partículas pesadas na atmosfera.
De forma semelhante ao acontecimento que dizimou os dinossauros, essas partículas que as armas nucleares jogariam na atmosfera filtrariam a luz solar, fazendo com que o planeta escurecesse e esfriasse, trazendo temperaturas abaixo de zero por vários meses, até mesmo durante o verão.
Assim, as pessoas que eventualmente sobrevivessem por estar longe da área atingida pelas bombas talvez não conseguisse suportar as provações resultantes da detonação das bombas.
Mas mesmo no cenário mais otimista, considerando que o hemisfério sul não seria atingido de maneira tão rigorosa quanto o hemisfério norte e que talvez países como o Brasil conseguissem lidar um pouco melhor com as consequências da crise nuclear, é fato que a vida na terra mudaria drasticamente.
E em certo sentido, se um bug em um computador soviético não ocasionou o fim do mundo, em muito isso se deve à postura de Stanislav Petrov, que pelo contexto, tinha tudo para simplesmente avisar seus superiores e tirar de suas próprias costas a responsabilidade por tomar aquela fatídica decisão.
Acho que realmente devemos ser gratos pelo fato de que nem todos os comandantes soviéticos eram loucos psicopatas.
Como um bônus, fica também o registro de que esta não era a primeira vez que o apocalipse batia às portas. Durante a crise dos mísseis de Cuba, Vasili Arkhipov também desempenhou um papel semelhante ao de Petrov. Acontece que durante o bloqueio a Cuba, ele era um dos três oficiais com poder decisório em um submarino soviético equipado com torpedos nucleares.
Na ocasião, durante o período mais sensível do conflito, o submarino havia perdido o contato com Moscou, e os tripulantes não sabiam se a guerra efetivamente havia começado.
Mas o uso do armamento nuclear era uma espécie de recurso final, e que precisava da concordância dos três oficiais mais graduados da operação.
E pra nossa sorte, mesmo com dois oficiais votando por torpedear os americanos com armas nucleares, coube a Vasili Arkhipov o bom senso de vetar a manobra e impedir a desastrada atitude de seus camaradas.
Seus camaradas, a propósito, não tinham um perfil tão responsável. Valentin Grigorievitch Savitsky, um dos comandantes da missão, não apenas concordou com o uso dos torpedos nucleares, como também acreditava que essa era a única ação que poderia salvar a honra da mãe Rússia.
Enfim, a guerra fria tem inúmeras curiosidades como essas, inclusive com algumas crises protagonizadas pelo lado americano do conflito, mas infelizmente não se pode resumir toda a história da guerra fria à um único texto. 

De todo modo, vale sempre a pena colocar tais fatos em perspectiva, já que com o passar dos anos, as pessoas parecem ignorar que por vezes, bastava que um único homem tivesse apertado um botão para que tudo fosse pelos ares, colocando a perder toda a história do planeta e da própria humanidade.

Tuesday, October 1, 2019

Joshua Norton - o primeiro e último imperador libertário

No dia 08 de janeiro de 1880, em São Francisco, Califórnia, morreu Joshua Abraham Norton, o homem conhecido como primeiro e único imperador dos Estados Unidos.
Seu corpo foi transportado por uma carruagem e cerca de 30 mil pessoas acompanharam o enterro. Até hoje, sua lápide apresenta os seguintes dizeres: Norton I, imperador dos Estados Unidos.
Mas essa não é a história americana que te contaram e você deve estar se perguntando: afinal, como poderiam os Estados Unidos ter um imperador, quando no século XIX eles já eram uma república?
Então senta, que lá vem a história.
A nossa jornada tem início em 1818, na Inglaterra, quando nasce Joshua Abraham Norton.
De uma família abastada, Norton acabou por imigrar para os Estados Unidos em busca de oportunidades de negócios. Durante alguns anos ele conseguiu administrar bem suas finanças, mas em 1852 uma crise no preço do arroz seria sua ruína.
Acontece que ele buscou negociar uma expressiva quantidade de arroz, apostando na alta dos preços por conta da escassez. Todavia com a chegada de seguidos carregamentos de arroz na região, o preço caiu de forma estrondosa, arruinando as finanças e possivelmente a sanidade de Norton.
Sete anos depois, Joshua Norton apareceu na sede do jornal San Francisco Bulletin portando uma declaração para que fosse publicada. Nela, Joshua se declara Norton I, imperador dos Estados Unidos, convocando as autoridades para a cerimônia de sua coroação.
Desse dia em diante, Norton I passou a andar pela cidade com um uniforme de imperador, um chapéu de plumas, uma bengala e as vezes uma espada. Sua rotina consistia em acordar cedo e inspecionar o funcionamento da cidade, desde a limpeza municipal até o funcionamento dos bondes.
Já os seus decretos eram um show a parte, com um conteúdo que seria apreciado por muitos libertários. Suas primeiras proclamações determinavam o fechamento do congresso nacional e a extinção dos partidos democrata e republicano, que Norton considerava serem um antro de corrupção.
Durante a guerra de secessão, Norton chegou a encaminhar decretos para ambos os lados exigindo o fim das hostilidades e uma saída pacífica para o conflito.
O imperador Norton cativou profundamente os habitantes de São Francisco, sendo respeitado e até aclamado pelo povo local.
Os comerciantes ofereciam refeições para o imperador, vagas gratuitas no transporte ferroviário e até mesmo entradas para espetáculos de teatro.
Mas Norton estava quebrado e não exercia atividades remuneradas. Então, para cobrir despesas como o quarto de uma simples hospedaria, Norton passou a emitir títulos do império, ao custo de cinquenta centavos, em que ele prometia pagar ao portador o dinheiro corrigido na data do vencimento.
Ironicamente, quando os títulos já estavam para vencer, e sabendo que não teria dinheiro para pagar, Norton emitiu novos títulos com novas promessas, fazendo uma pedalada fiscal digna dos bancos centrais modernos.
Mas a verdade era que ninguém esperava receber pagamento pelos títulos emitidos por Norton. As pessoas trocavam livremente o seu dinheiro pelos papeis do imperador somente com o desejo de assegurar que ele tivesse suas necessidades supridas.
Na verdade, esses papeis acabaram por se tornar artigos colecionáveis, e mesmo hoje eles chegam a ser negociados por uma quantia considerável.
O apoio que o imperador recebia dos comerciantes e da população local se traduzia em prosperidade para a cidade, que começou a atrair turistas que queriam tirar fotografias e ouvir o que o homem tinha a dizer.
Norton tinha ideias ambiciosas que só seriam realizadas quase um século depois. Ele até mesmo defendeu que os negros tivessem direito a frequentar escolas públicas e usufruir do sistema de transportes, precedendo em quase cem anos as conquistas de Martin Luther king.
Durante seus 21 anos de reinado, Norton continuou a escrever decretos e a enviar correspondências para as autoridades políticas. Em uma delas, ele ofereceu casar-se com a rainha Vitória e unificar novamente os dois reinos.
Muito se discute se o próprio Norton se levava a sério, se era louco, ou se só fazia das suas peripécias para ter um meio de vida.
Fosse qual fosse o caso, a população via em Norton mais do que um entretenimento. Via nele um símbolo de protesto contra o governo central corrupto.
No fim das contas não é difícil saber o porque da população local simpatizar tanto com Joshua Abraham Norton. Os homens que de fato ocupam a função de rei ou cargos similares vem sujeitando a humanidade aos piores males desde tempos imemoriais.
Já Norton não detinha nenhum poder político real, mas era isso que o tornava bem visto. Por ser quem era, a população de forma voluntária o tratava como rei e o cumprimentava nas ruas com toda a cerimônia. E o imperador, é claro, retribuía a gentileza, até distribuindo títulos de nobreza, principalmente para as crianças, que ele gostava bastante.
Os jornais declaravam o seguinte sobre Norton I:
“Norton foi em seu tempo um respeitável comerciante, e desde que ele vestiu o Manto Imperial ele não derramou nenhum sangue, não roubou ninguém e não pilhou país nenhum, o que é mais do que pode ser dito de qualquer outro nesse ramo.”
Na cultura pop, Norton foi retratado em um quadrinho do personagem Sandman, da DC Comics. Nessa história, a humanidade é influenciada por sete entidades que correspondem a algum aspecto da existência, conhecidos como os sete perpétuos.
Nesse arco, após Norton ir a falência, a entidade desespero desafia outra entidade, o sonho, a salvar aquele pobre homem.
A entidade aceita, e dá a Norton um propósito: o sonho de ser o imperador dos Estados Unidos.
Assim, Norton passa a ser o louco que acreditava ser o imperador dos estados unidos, mas foi essa loucura que o manteve são.
Ainda assim, mesmo em uma HQ, a morte era o destino que esperava Norton.
A entidade morte, um dos perpétuos de Sandman, veio também para Norton e o acompanhou até a vida após a morte, observando que de todos os imperadores, rainhas e reis do mundo que ela tinha tomado, ela gostava mais dele.
Essa história é de autoria do célebre Neil Gaiman, retratada no arco espelhos distantes, cuja leitura é mais que recomendada.
De toda essa história, fica aquele sentimento indescritível de que seria muito melhor que os imperadores e reis fossem realmente como Joshua Norton, um homem que ninguém pode acusar de violar os direitos individuais de terceiros.
Mas, quem sabe no futuro, todos os mandatários estatais não venham ser de fato como Joshua Norton?
Se nossas estimativas estiverem corretas, em breve o estado poderá estar impossibilitado de ultrapassar as barreiras de privacidade das tecnologias descentralizadas, impedindo o confisco de bens na forma de tributos.
Então, talvez o imperador Norton cumpra um propósito quase profético, prefigurando que, sem o poder de impor seus próprios decretos, os políticos muito em breve estarão fadados a tornarem-se meras curiosidades turísticas vestidas com um chapéu espalhafatoso...
Esse sem sombra de dúvidas é um sonho digno de ser sonhado.
 
http://emperornortontrust.org/emperor/life
https://sandman.fandom.com/wiki/Norton_I
https://contraditorium.com/2018/08/16/o-rei-dos-malucos-beleza-joshua-norton-imperador-dos-estados-unidos/
http://mundotentacular.blogspot.com/2019/07/norton-i-vida-e-o-reinado-do-primeiro-e.html
https://odisseialiteraria.com/norton-i-america-s-first-emperor
https://oblogtextaculos.wordpress.com/2009/09/19/norton-1-o-imperador-dos-estados-unidos/
https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/joshua-norton-comica-trajetoria-do-primeiro-e-unico-imperador-dos-estados-unidos.phtml
https://history.uol.com.br/noticias/os-estados-unidos-ja-tiveram-um-imperador

Dicas do direito com o Canal Intimados

Olá amigos, tudo bem? Quero orgulhosamente anunciar que estou investindo em um novo projeto que é o Canal Intimados. Nosso canal tem a propo...