No capítulo 2, onde Freire disserta sobre o
que ele chama de educação bancária, ele desenvolve a crítica daquilo que ele vê
como o modelo de educação tradicional, sobre o qual já tecemos algumas
considerações. Trata-se do contraste entre o ensino convencional e a
pedagogia do oprimido, a qual alega ver no educando o próprio construtor do seu
saber.
Embora tais proposições possuam um inegável
apelo estético, já vimos que Freire relativiza seus padrões de autonomia da pedagogia do
oprimido em prol de uma plataforma onde ele pretende conseguir a adesão dos
educandos, no caso, a plataforma socialista. No caso, seu livro deixa evidente que a alfabetização não é um fim em si mesmo, da qual o aluno poderia valer-se para raciocinar sobre Smith e Ricardo, sobre Marx e Bakunin. Por mais que Freire insista numa suposta autonomia do aluno, a pedagogia do oprimido vai inegavelmente condicionando as conclusões que Freire já estabeleceu de antemão.
Aliás, a pedagogia do oprimido se mostra um livro que guarda muito pouca relação com as matérias de aprendizado escolar. Eis aqui um dos raríssimos casos em que Freire
chega a tratar do tema matemática:
Por isto mesmo é que uma das características
desta educação dissertadora é a “sonoridade” da palavra e não sua força
transformadora. Quatro vezes quatro, dezesseis; Pará, capital Belém, que o
educando fixa, memoriza, repete, sem perceber o que realmente significa quatro
vezes quatro. O que verdadeiramente significa capital, na afirmação, Pará,
capital Belém.
Só existe saber na invenção, na reinvenção, na
busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o
mundo e com os outros. Busca esperançosa também. Na visão “bancária” da
educação, o “saber” é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada
saber. Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da
opressão – a absolutização da ignorância, que constitui o que chamamos de
alienação da ignorância, segundo a qual esta se encontra sempre no outro.
O educador, que aliena a ignorância, se mantém
em posições fixas, invariáveis. Será sempre o que sabe, enquanto os educandos
serão sempre os que não sabem.
Os educandos, alienados, por sua vez, à
maneira do escravo na dialética hegeliana, reconhecem em sua ignorância a razão
da existência do educador, mas não chegam, nem sequer ao modo do escravo
naquela dialética, a descobrir-se educadores do educador.
Na verdade, como mais adiante discutiremos, a
razão de ser da educação libertadora está no seu impulso inicial conciliador.
Daí que tal forma de educação implique na superação da contradição
educador-educandos, de tal maneira que se façam ambos, simultaneamente,
educadores e educandos.
Ou seja, mesmo quando realmente traz para o
texto uma sentença matemática, Freire tenta apresentar o educador como um
Sócrates que vai, através da dialéctica com os educandos, destilar a sabedoria
diretamente extraída de uma dimensão quase platônica. Se os alunos efetivamente
poderão saber se quatro caixas com quatro pacotes de arroz cada resultarão em
dezesseis pacotes de arroz... bem, isso parece menos importante do que fazer o aluno atentar para as chamadas contradições hegelianas.
Mais adiante ele acrescenta:
Seu trabalho será, também, o de imitar o
mundo. O de ordenar o que já se faz espontaneamente. O de “encher” os educandos
de conteúdos. É o de fazer depósitos de
“comunicados” – falso saber – que ele
considera como verdadeiro saber{41}.
Esta é uma concepção que, implicando numa
prática, somente pode interessar aos opressores que estarão tão mais em paz,
quanto mais adequados estejam os homens ao mundo. E tão mais preocupados,
quanto mais questionando o mundo estejam os homens.
A ambição de PF é educar os
homens para que questionem o mundo. Uma pretensão que em tese pareceria louvável.
Mas quereria Freire que os homens se questionassem quanto a ser o arranjo atual
mais benéfico do que o arranjo idealizado por Marx? De nossa leitura, extraímos
que Freire facilmente relativizaria sua pretensão de autonomia do educando para
aplicar uma correção de curso em seu roteiro educacional.
E se alguém não está convencido da prolixidade
irremediável das divagações a la bailarina de Paulo Freire, talvez o trecho a
seguir traga uma nova luz:
Neste sentido, a educação libertadora,
problematizadora, já não pode ser o ato de depositar, ou de narrar, ou de
transferir, ou de transmitir “conhecimentos” e valores aos educandos, meros
pacientes, à maneira da educação “bancária”, mas um ato cognoscente. Como
situação gnosiológica, em que o objeto cognoscível, em lugar de ser o término
do ato cognoscente de um sujeito, é o mediatizador de sujeitos cognoscentes,
educador, de um lado, educandos, de outro, a educação problematizadora coloca,
desde logo, a exigência da superação da contradição educador-educandos. Sem
esta, não é possível a relação dialógica, indispensável à cognoscibilidade dos
sujeitos cognoscentes, em torno do mesmo objeto cognoscível.
Quantos rodopios retóricos Paulo Freire é
capaz de apresentar em um único parágrafo? Ele certamente é mestre nesta arte.
Quanto mais se problematizam os educandos,
como seres no mundo e com o mundo, tanto mais se sentirão desafiados. Tão mais
desafiados, quanto mais obrigados a responder ao desafio. Desafiados,
compreendem o desafio na própria ação de captá-lo. Mas, precisamente porque
captam o desafio como um problema em suas conexões com outros, num plano de
totalidade e não como algo petrificado, a compreensão resultante tende a
tornar-se crescentemente crítica, por isto, cada vez mais desalienada.
A nós parece evidente que a ânsia freireana
pela escrita poética deveria tê-lo conduzido ao mundo das artes antes de tentar
transcender a pedagogia em termos shakespearianos.
Ninguém pode ser, autenticamente, proibido que
os outros sejam. Esta é uma exigência radical. O ser mais que se busque no
individualismo conduz ao ter mais egoísta, forma de ser menos. De
desumanização. Não que não seja fundamental – repitamos – ter para ser.
Precisamente porque é, não pode o ter de alguns converter-se na obstaculização
ao ter dos demais, robustecendo o poder dos primeiros, com o qual esmagam os
segundos, na sua escassez de poder.
E aqui, mais um dos casos onde Freire pretende
estar a emular um Sócrates:
Daí que, para esta concepção como prática da
liberdade, a sua dialogicidade comece, não quando o educador-educando se
encontra com os educandos-educadores em uma situação pedagógica, mas antes,
quando aquele se pergunta em torno do que vai dialogar com estes. Esta
inquietação em torno do conteúdo do diálogo é a inquietação em torno do
conteúdo programático da educação.
Há por toda a extensão de sua obra uma
infinidade de casos como estes, mas para fins de um texto de divulgação, parece
que já bastam tais exemplos.
Vamos direcionar a conclusão do nosso artigo
para o que julgamos ser o ponto nevrálgico da obra de Freire, qual seja, o fato
de ser uma obra sobre um programa socialista revolucionário, e não um compêndio
sobre alfabetização como costumeiramente se pretende.
Comecemos com o seguinte parágrafo:
Será a partir da situação presente,
existencial, concreta, refletindo o conjunto de aspirações do povo, que
poderemos organizar o conteúdo programático da situação ou da ação política,
acrescentemos.
O que temos de fazer, na verdade, é propor ao
povo, através de certas contradições básicas, sua situação existencial,
concreta, presente, como problema que, por sua vez, o desafia e, assim, lhe
exige resposta, não só no risível intelectual, mas no nível da ação.{62}
Creio que tais linhas sejam auto-explicativas.
Aliás, perdoem-me, mas não resistir a trazer
mais um trecho do Sócrates emulado:
Daí em diante, este ser, que desta forma atua
e que, necessariamente, é um ser consciência de si, um ser “para si”, não
poderia ser, se não estivesse sendo, no mundo com o qual está, como também este
mundo não existiria, se este ser não existisse.
Muitas vezes já foi dito que o método Paulo
Freire nunca foi aplicado. Isso tem um fundo de verdade, mas pelo simples fato
de que não há de fato uma pedagogia freireana. Veja-se o seguinte trecho:
Assim como não é possível – o que salientamos
no início deste capítulo – elaborar um programa a ser doado ao povo, também não
o é elaborar roteiros de pesquisa do universo temático a partir de pontos
prefixados pelos investigadores que se julgam a si mesmos os sujeitos
exclusivos da investigação.
Como dissemos, não há propriamente algo que se
possa chamar um pedagogia Paulo Freire. Na realidade, se um educador se
propuser a aplicar estritamente o que fora apresentado por Freire, então o
educador se sentará em uma roda com certo número de adultos analfabetos e
proporá discussões a partir do noticiário, ou pegando o gancho em algum tópico
da comunidade para abordar questões de cunho político e econômico. Nada disso
porém resultará em que os participantes saiam do encontro mais versados em
álgebra, em gramática ou leitura.
Como fazer, porém, no caso em que não se possa
dispor dos recursos para esta prévia investigação temática, nos termos
analisados?
Com um mínimo de conhecimento da realidade,
podem os educadores escolher alguns temas básicos que funcionariam como
“codificações de investigação”. Começariam assim o plano com temas
introdutórios ao mesmo tempo em que iniciariam a investigação temática para o
desdobramento do programa, a partir destes temas.
Um deles, que nos parece, como já dissemos, um
tema central, indispensável, é o do conceito antropológico de cultura.
na hipótese agora referida, podem os
educadores, depois de alguns dias de relações horizontais com os participantes
do “círculo de cultura”, perguntar-lhes diretamente:
“Que outros temas ou assuntos poderíamos
discutir além deste?”
Na medida em que forem respondendo, logo
depois de anotar a resposta, a propõem ao grupo com um problema também.
Admitamos que um dos membros do grupo diz:
“Gostaria de discutir sobre o nacionalismo”. “Muito bem, (diria o educador,
após registrar a sugestão e acrescentaria): “Que significa nacionalismo? Por
que pode interessar-nos a discussão sobre o nacionalismo?” Capítulo 3.
Não há como escapar ao fato de que para
Freire, a devida colocação dos pronomes, dos adjetivos e dos verbos sai de cena
para dar lugar à formação do pensamento revolucionário. Para ele, importa menos
que o aluno possa ler sobre os doze trabalhos de Hércules e sim que ele possua
noções sobre mais-valia.
E não menos importante do que os apontamentos anteriores, uma constatação de fundamental importância é o papel preponderante que tem na obra de Freire figuras como Fidel, Che Guevara, Mao Tsé-Tung e Lenin.
Como jhá referimos, na obra de Freire são escassas as ocasiões em que ele faz
referência expressa ao ensino de matemática, português ou questões rudimentares de aprendizado. Em contrapartida, são inúmeras as menções a Guevara e
assemelhados, onde PF chega até a lançar mão de escritos de Guevara sobre o amor que
impulsionava a revolução socialista:
a riesgo de parecer ridiculo que el verdadero
revolucionario es animado por fuertes sentimientos de amor. Es imposible pensar
un revolucionário autêntico, sin esta cualidad”. Ernesto Guevara: Obra
Revolucionária, México, Ediciones Era-S.A., 1967, pp. 637-38.
E talvez nenhuma outra passagem seja mais
reveladora do que a que vem a seguir:
No relato já citado que faz Guevara da luta em
Sierra Maestra, relato em que a humildade é uma nota constante, se comprovam
estas possibilidades, não apenas em deserções da luta, mas na traição mesma à
causa.
Algumas vezes, no seu relato, ao reconhecer a
necessidade da punição ao que desertou para manter a coesão e a disciplina do
grupo, reconhece também certas razões explicativas da deserção. Uma delas,
diremos nós, talvez a mais importante, é a ambigüidade do ser do desertor.
Foi assim, no seu diálogo com as massas
camponesas, que sua práxis revolucionária tomou um sentido definitivo. Mas, o
que não expressou Guevara, talvez por sua humildade, é que foram exatamente
esta humildade e a sua capacidade de amar, que possibilitaram a sua “comunhão”
com o povo.
Até no seu estilo inconfundível de narrar os
momentos da sua e da experiência dos seus companheiros, de falar de seus
encontros com os camponeses “leais e humildes”, numa linguagem às vezes quase
evangélica, este homem excepcional revelava uma profunda capacidade de amar e
comunicar-se.
Neste ponto, creio já ter deixado explicitado
tudo o que haveria de mais revelador na obra de Paulo Freire. Porém, apenas para
concluir, faço questão de responder a um dos mais frequentes argumentos levantados a
favor de sua obra: Por acaso sua fama internacional, seu reconhecimento e sua
difusão em universidades no exterior não comprova a relevância da pedagogia de Paulo Freire?
Neste caso, por mais que se costume apontar
para um projeto de alfabetização encabeçado por Freire em que ele alfabetizou
um grupo de adultos, não há efetivamente nada que conecte a pedagogia do
oprimido com esse feito.
Aliás, desde os sumérios que adultos aprendem as letras, de modo que ter Freire
realizado tal façanha não parece em si mesmo um ato memoráveltão .
No mais, o fato de Freire ser celebrado em nichos como universidades americanas talvez revele mais sobre tais universidades do que sobre a eficiência do método de Freire.
É notório que os EUA não possuem
lá um grande problema de analfabetismo de pessoas adultas, a menos que os
revolucionários considerem analfabetos os adultos que não se encontrem em meio
à militância socialista. Neste caso pode bem ser que esta seja a razão por que
Freire recebe tanta atenção de nomes do alto clero universitário.