No momento em que escrevo este
texto (19 de setembro de 2020) comemora-se o 99º aniversário de nascimento de
Paulo Freire, sendo esta data marcada por inúmeras reportagens e manifestações
nas redes sociais de apreço e desapreço ao personagem e sua obra.
A controvérsia que cerca Freire é
antiga, mas costuma ser revivida de tempos em tempos. E foi numa dessas
oportunidades que fiz questão de ler sua principal obra, A pedagogia do
oprimido, encarando também na sequência A pedagogia da esperança, considerada como
uma continuação do primeiro livro.
Confesso que não é de hoje que
pretendi elaborar uma review dessas minhas leituras, mas sempre houve algo que
me fazia protelar a escrita: a obra de Freire é qualquer coisa, menos concisa.
Com isso quero dizer que Freire
lança-se em voltas intermináveis dentro de uma retórica maçante e excêntrica, a
qual ele busca visivelmente infundir de poesia, sacrificando a objetividade no
processo.
Se há algo com que Freire poderia
ser comparado é com uma bailarina. Quando Freire deve ir de um ponto a para um
ponto b, o que ele faz é saltar, rodopiar, quase desmaiar de êxtase e então
parece esquecer completamente qual era o assunto discutido, para só então se
dar ao luxo de desenhar o ponto final.
Veja-se algumas das suas intermináveis
ladainhas:
Enquanto tocados pelo medo da
liberdade, se negam a apelar a outros e a escutar o apelo que se lhes faça ou
que se tenham feito a si mesmos, preferindo a gregarização à convivência
autêntica. Preferindo a adaptação em que sua não liberdade os mantém à comunhão
criadora, a que a liberdade leva, até mesmo quando ainda somente buscada.
Sofrem uma dualidade que se
instala na “interioridade” do seu ser. Descobrem que, não sendo livres, não
chegam a ser autenticamente. Querem ser, mas temem ser. São eles e ao mesmo
tempo são o outro introjetado neles, como consciência opressora. Sua luta se
trava entre serem eles mesmos ou serem duplos. Entre expulsarem ou não ao
opressor de “dentro” de si. Entre se desalienarem ou se manterem alienados.
Entre seguirem prescrições ou terem opções. Entre serem espectadores ou atores.
Entre atuarem ou terem a ilusão de que atuam, na atuação dos opressores. Entre
dizerem a palavra ou não terem voz, castrados no seu poder de criar e recriar,
no seu poder de transformar o mundo.
Este é o trágico dilema dos
oprimidos, que a sua pedagogia tem de enfrentar.
A libertação, por isto, é um
parto. E um parto doloroso. O homem que nasce deste parto é um homem novo que
só é viável na e pela, superação da contradição opressores-oprimidos, que é a
libertação de todos.
A superação da contradição é o
parto que traz ao mundo este homem novo não mais opressor; não mais oprimido,
mas homem libertando-se.
Esta superação não pode dar-se,
porém, em termos puramente idealistas. Se se faz indispensável aos oprimidas,
para a luta por sua libertação, que a realidade concreta de opressão já não
seja para eles uma espécie de “mundo fechado” (em que se gera o seu medo da
liberdade) do qual não pudessem sair, mas uma situação que apenas os limita e que
eles podem transformar, é fundamental, então, que, ao reconhecerem o limite que
a realidade opressora lhes impõe, tenham, neste reconhecimento, o motor de sua
ação libertadora. A pedagogia do oprimido, Capítulo 1.
Parece-nos muito claro, não
apenas neste, mas noutros momentos do ensaio que, ao apresentarmos esta radical
exigência – a da transformação objetiva da situação opressora – combatendo um
imobilismo subjetivista que transformasse o ter consciência da opressão numa
espécie de espera paciente de que um dia a opressão desapareceria por si mesma,
não estamos negando o papel da subjetividade na luta pela modificação das
estruturas. Capítulo 1.
Num pensar dialético, ação e
mundo, mundo e ação, estão intimamente solidários. Mas, a ação só é humana quando,
mais que um puro fazer, é um que fazer, isto é, quando também não se dicotomiza
da reflexão. Esta, necessária à ação, está implícita na exigência que faz
Lukács da “explicação às massas de sua própria ação” – como está implícita na
finalidade que ele dá a essa explicação – a de “ativar conscientemente o
desenvolvimento ulterior da experiência”.
Para nós, contudo, a questão não
está propriamente em explicar às massas, mas em dialogar com elas sobre a sua
ação. De qualquer forma, o dever que Lukács reconhece ao partido revolucionário
de “explicar às massas a sua ação” coincide com a exigência que fazemos da
inserção critica das massas na sua realidade através da práxis, pelo fato de
nenhuma realidade se transformar a si mesma.{15} Capítulo 1.
Essas são só algumas linhas que
ilustram o por que de havermos protelado a abordagem de Paulo Freire.
Os mais desavisados poderiam
pensar que trata-se de uma obra tão iluminada cuja produção de um resumo se
mostraria uma tarefa hercúlea, e certamente Freire estaria bastante satisfeito
em ser assim analisado. O fato porém é que ele apresenta muitos conceitos
comuns dentro das discussões em círculos marxistas que poderiam muito bem serem
apresentados com uma significativa objetividade. Nos textos acima, por exemplo,
ele discute a postura de certos marxistas fatalistas que acreditam ser a
superação do capitalismo um resultado da atuação das forças históricas, o que
seria um evento que a militância política não teria poder nem de promover nem
de retardar. Trocando em miúdos, tais militantes criticados por Freire
acreditam que o capitalismo será superado por suas próprias contradições, e não
pela ação revolucionária de um Marx ou um Lênin.
Apesar de ser esse o conteúdo
interpretado de vários parágrafos destacados acima, é notório que a tentativa
de Freire em esculpir suas convicções políticas como se fossem uma obra de arte
é uma escolha que ele faz em prejuízo da própria compreensão dos seus textos.
Que Freire aspirasse a ser um
poeta, um trovador ou uma bailarina... nada disso seria de nosso interesse.
Contudo, certos leitores de sua obra, contagiados pelos rodopios Paulo
Freirianos parecem convencidos de estarem diante de uma obra prima, pelo que
inclusive lhe conferiram o epíteto de patrono da educação.
Aliás, é imprescindível ter em
mente essa fama conferida a Paulo Freire como educador ao ler sua principal
obra, A pedagogia do oprimido. Pretendo desenvolver melhor este argumento mais
adiante, mas o fato é que pouco ou quase nada se encontra na referida obra em
matéria de alfabetização e pedagogia propriamente dita.
Inclusive, sobre esse ponto,
vejamos o trecho abaixo:
Ainda que não queiramos
antecipar-nos, poderemos, contudo, afirmar que um primeiro aspecto desta
indagação se encontra na distinção entre educação sistemática, a que só pode
ser mudada com o poder, e os trabalhos educativos, que devem ser realizados com
os oprimidos, no processo de sua organização.
A pedagogia do oprimido, como
pedagogia humanista e libertadora, terá, dois momentos distintos. O primeiro,
em que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se
na práxis, com a sua transformação; o segundo, em que, transformada a realidade
opressora, esta pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia
dos homens em processo de permanente libertação.
Em qualquer destes momentos, será
sempre a ação profunda, através da qual se enfrentará, culturalmente, a cultura
da dominação{16}. No primeiro momento, por meio da mudança da percepção do
mundo opressor por parte dos oprimidos; no segundo, pela expulsão dos mitos
criados e desenvolvidos na estrutura opressora e que se preservam como
espectros míticos, na estrutura nova que surge da transformação revolucionária.
Capítulo 1.
Veja que embora ainda estejamos a
apresentar trechos do primeiro capítulo, a quantidade de citações diretas
começa a tornar essa análise problemática. Por um lado, ao recorrer a citações
tão extensas, muitas plataformas poderiam se negar a publicar este texto sob a
justificativa de plágio. Por outro lado, se fizéssemos citações indiretas e
resumidas, facilmente alguém poderia acusar este escriba de estar adulterando
os pensamentos de Freire.
Assim, acabo tendo de recorrer a
exaustivas e prolixas citações diretas, pois que Freire demora-se uma
eternidade nos enfeites de seu raciocínio e protela o mais que pode a conclusão
da sua linha de pensamento.
Um fato bastante desconcertante é
o verniz de poesia que Paulo Freire emprega afim de justificar a ação violenta
no processo de transformação da sociedade capitalista.
Ops... espere aí! Em que momento
nós paramos de falar em alfabetização de jovens e adultos e passamos a
discorrer sobre eventos de ruptura institucional violenta?
Aparentemente, poucos se fazem
essas perguntas, mas uma vez feitas, o leitor poderá perceber que a prioridade
de Freire está em qualquer lugar, menos na alfabetização.
Inclusive, sendo o título da obra
A pedagogia do oprimido, caso Freire estivesse a produzir uma redação,
certamente ele reprovaria por ter fugido ao tema, eis que seus textos não falam
de outro assunto senão Marxismo explícito.
Outro trecho a seguir para
ilustrar este raciocínio:
Na verdade, porém, por paradoxal que
possa parecer, na resposta dos oprimidos à violência dos opressores é que vamos
encontrar o gesto de amor. Consciente ou inconscientemente, o ato de rebelião
dos oprimidos, que é sempre tão ou quase tão violento quanto a violência que os
cria, este ato dos oprimidos, sim, pode inaugurar o amor.
Enquanto a violência dos
opressores faz dos oprimidos homens proibidos de ser, a resposta destes à
violência daqueles se encontra infundida do anseio de busca do direito de ser.
Os opressores, violentando e
proibindo que os outros sejam, não podem igualmente ser; os oprimidos, lutando
por ser, ao retirar-lhes o poder de oprimir e de esmagar, lhes restauram a
humanidade que haviam perdido no uso da opressão.
Por isto é que, somente os
oprimidos, libertando-se, podem libertar os opressores. Estes, enquanto classe
que oprime, nem libertam, nem se libertam. Capítulo 1.
E o que dizer da seguinte
passagem?
Será na sua convivência com os
oprimidos, sabendo também um deles – somente a um nível diferente de percepção
da realidade – que poderão compreender as formas de ser e comportarse dos
oprimidos, que refletem, em momentos diversos, a estrutura da dominação.
Uma destas, de que já falamos
rapidamente, é a dualidade existencial dos oprimidos que, “hospedando” o
opressor cuja “sombra” eles “introjetam”, são eles e ao mesmo tempo são o
outro. Dai que, quase sempre, enquanto não chegam a localizar o opressor
concreta-mente, como também enquanto não cheguem a ser “consciência para si”,
assumam atitudes fatalistas em face da situação concreta de opressão em que
estão{22}.
O que Freire faz neste ponto,
embora a alguns possa ter escapado, é lançar mão da teoria de Hegel da
dialética opressor/oprimido que ele desenvolve com a figura do escravo e do seu
senhor. Assim, fundado nos mesmos pressupostos em que banqueteou-se Karl Marx,
Freire divaga sobre as convicções arraigadas nas pessoas que ele pretende
salvar com sua pedagogia. Sim, ao mesmo tempo em que ele leva a mensagem de
subverter a ordem da relação professor/aluno, mestre/discípulo, por reconhecer
no educando sujeito ativo da sua transformação, ainda assim Freire não se
esquiva de trabalhar a aceitação do seu evangelho socialista, assim se
esquecendo de toda a ladainha sobre a autonomia do educando.
Continua...
No comments:
Post a Comment