Saturday, September 19, 2020

A pedagogia do oprimido e o pensamento revolucionário de Paulo Freire, Parte 1

No momento em que escrevo este texto (19 de setembro de 2020) comemora-se o 99º aniversário de nascimento de Paulo Freire, sendo esta data marcada por inúmeras reportagens e manifestações nas redes sociais de apreço e desapreço ao personagem e sua obra.

A controvérsia que cerca Freire é antiga, mas costuma ser revivida de tempos em tempos. E foi numa dessas oportunidades que fiz questão de ler sua principal obra, A pedagogia do oprimido, encarando também na sequência A pedagogia da esperança, considerada como uma continuação do primeiro livro.

Confesso que não é de hoje que pretendi elaborar uma review dessas minhas leituras, mas sempre houve algo que me fazia protelar a escrita: a obra de Freire é qualquer coisa, menos concisa.

Com isso quero dizer que Freire lança-se em voltas intermináveis dentro de uma retórica maçante e excêntrica, a qual ele busca visivelmente infundir de poesia, sacrificando a objetividade no processo.

Se há algo com que Freire poderia ser comparado é com uma bailarina. Quando Freire deve ir de um ponto a para um ponto b, o que ele faz é saltar, rodopiar, quase desmaiar de êxtase e então parece esquecer completamente qual era o assunto discutido, para só então se dar ao luxo de desenhar o ponto final.

Veja-se algumas das suas intermináveis ladainhas:

 

Enquanto tocados pelo medo da liberdade, se negam a apelar a outros e a escutar o apelo que se lhes faça ou que se tenham feito a si mesmos, preferindo a gregarização à convivência autêntica. Preferindo a adaptação em que sua não liberdade os mantém à comunhão criadora, a que a liberdade leva, até mesmo quando ainda somente buscada.

Sofrem uma dualidade que se instala na “interioridade” do seu ser. Descobrem que, não sendo livres, não chegam a ser autenticamente. Querem ser, mas temem ser. São eles e ao mesmo tempo são o outro introjetado neles, como consciência opressora. Sua luta se trava entre serem eles mesmos ou serem duplos. Entre expulsarem ou não ao opressor de “dentro” de si. Entre se desalienarem ou se manterem alienados. Entre seguirem prescrições ou terem opções. Entre serem espectadores ou atores. Entre atuarem ou terem a ilusão de que atuam, na atuação dos opressores. Entre dizerem a palavra ou não terem voz, castrados no seu poder de criar e recriar, no seu poder de transformar o mundo.

Este é o trágico dilema dos oprimidos, que a sua pedagogia tem de enfrentar.

A libertação, por isto, é um parto. E um parto doloroso. O homem que nasce deste parto é um homem novo que só é viável na e pela, superação da contradição opressores-oprimidos, que é a libertação de todos.

A superação da contradição é o parto que traz ao mundo este homem novo não mais opressor; não mais oprimido, mas homem libertando-se.

Esta superação não pode dar-se, porém, em termos puramente idealistas. Se se faz indispensável aos oprimidas, para a luta por sua libertação, que a realidade concreta de opressão já não seja para eles uma espécie de “mundo fechado” (em que se gera o seu medo da liberdade) do qual não pudessem sair, mas uma situação que apenas os limita e que eles podem transformar, é fundamental, então, que, ao reconhecerem o limite que a realidade opressora lhes impõe, tenham, neste reconhecimento, o motor de sua ação libertadora. A pedagogia do oprimido, Capítulo 1.

 

Parece-nos muito claro, não apenas neste, mas noutros momentos do ensaio que, ao apresentarmos esta radical exigência – a da transformação objetiva da situação opressora – combatendo um imobilismo subjetivista que transformasse o ter consciência da opressão numa espécie de espera paciente de que um dia a opressão desapareceria por si mesma, não estamos negando o papel da subjetividade na luta pela modificação das estruturas. Capítulo 1.

 

Num pensar dialético, ação e mundo, mundo e ação, estão intimamente solidários. Mas, a ação só é humana quando, mais que um puro fazer, é um que fazer, isto é, quando também não se dicotomiza da reflexão. Esta, necessária à ação, está implícita na exigência que faz Lukács da “explicação às massas de sua própria ação” – como está implícita na finalidade que ele dá a essa explicação – a de “ativar conscientemente o desenvolvimento ulterior da experiência”.

Para nós, contudo, a questão não está propriamente em explicar às massas, mas em dialogar com elas sobre a sua ação. De qualquer forma, o dever que Lukács reconhece ao partido revolucionário de “explicar às massas a sua ação” coincide com a exigência que fazemos da inserção critica das massas na sua realidade através da práxis, pelo fato de nenhuma realidade se transformar a si mesma.{15} Capítulo 1.

 

Essas são só algumas linhas que ilustram o por que de havermos protelado a abordagem de Paulo Freire.

Os mais desavisados poderiam pensar que trata-se de uma obra tão iluminada cuja produção de um resumo se mostraria uma tarefa hercúlea, e certamente Freire estaria bastante satisfeito em ser assim analisado. O fato porém é que ele apresenta muitos conceitos comuns dentro das discussões em círculos marxistas que poderiam muito bem serem apresentados com uma significativa objetividade. Nos textos acima, por exemplo, ele discute a postura de certos marxistas fatalistas que acreditam ser a superação do capitalismo um resultado da atuação das forças históricas, o que seria um evento que a militância política não teria poder nem de promover nem de retardar. Trocando em miúdos, tais militantes criticados por Freire acreditam que o capitalismo será superado por suas próprias contradições, e não pela ação revolucionária de um Marx ou um Lênin.

Apesar de ser esse o conteúdo interpretado de vários parágrafos destacados acima, é notório que a tentativa de Freire em esculpir suas convicções políticas como se fossem uma obra de arte é uma escolha que ele faz em prejuízo da própria compreensão dos seus textos.

Que Freire aspirasse a ser um poeta, um trovador ou uma bailarina... nada disso seria de nosso interesse. Contudo, certos leitores de sua obra, contagiados pelos rodopios Paulo Freirianos parecem convencidos de estarem diante de uma obra prima, pelo que inclusive lhe conferiram o epíteto de patrono da educação.

Aliás, é imprescindível ter em mente essa fama conferida a Paulo Freire como educador ao ler sua principal obra, A pedagogia do oprimido. Pretendo desenvolver melhor este argumento mais adiante, mas o fato é que pouco ou quase nada se encontra na referida obra em matéria de alfabetização e pedagogia propriamente dita.

Inclusive, sobre esse ponto, vejamos o trecho abaixo:

Ainda que não queiramos antecipar-nos, poderemos, contudo, afirmar que um primeiro aspecto desta indagação se encontra na distinção entre educação sistemática, a que só pode ser mudada com o poder, e os trabalhos educativos, que devem ser realizados com os oprimidos, no processo de sua organização.

A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora, terá, dois momentos distintos. O primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se na práxis, com a sua transformação; o segundo, em que, transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação.

Em qualquer destes momentos, será sempre a ação profunda, através da qual se enfrentará, culturalmente, a cultura da dominação{16}. No primeiro momento, por meio da mudança da percepção do mundo opressor por parte dos oprimidos; no segundo, pela expulsão dos mitos criados e desenvolvidos na estrutura opressora e que se preservam como espectros míticos, na estrutura nova que surge da transformação revolucionária. Capítulo 1.

 

Veja que embora ainda estejamos a apresentar trechos do primeiro capítulo, a quantidade de citações diretas começa a tornar essa análise problemática. Por um lado, ao recorrer a citações tão extensas, muitas plataformas poderiam se negar a publicar este texto sob a justificativa de plágio. Por outro lado, se fizéssemos citações indiretas e resumidas, facilmente alguém poderia acusar este escriba de estar adulterando os pensamentos de Freire.

Assim, acabo tendo de recorrer a exaustivas e prolixas citações diretas, pois que Freire demora-se uma eternidade nos enfeites de seu raciocínio e protela o mais que pode a conclusão da sua linha de pensamento.

Um fato bastante desconcertante é o verniz de poesia que Paulo Freire emprega afim de justificar a ação violenta no processo de transformação da sociedade capitalista.

Ops... espere aí! Em que momento nós paramos de falar em alfabetização de jovens e adultos e passamos a discorrer sobre eventos de ruptura institucional violenta?

Aparentemente, poucos se fazem essas perguntas, mas uma vez feitas, o leitor poderá perceber que a prioridade de Freire está em qualquer lugar, menos na alfabetização.

Inclusive, sendo o título da obra A pedagogia do oprimido, caso Freire estivesse a produzir uma redação, certamente ele reprovaria por ter fugido ao tema, eis que seus textos não falam de outro assunto senão Marxismo explícito.

Outro trecho a seguir para ilustrar este raciocínio:

Na verdade, porém, por paradoxal que possa parecer, na resposta dos oprimidos à violência dos opressores é que vamos encontrar o gesto de amor. Consciente ou inconscientemente, o ato de rebelião dos oprimidos, que é sempre tão ou quase tão violento quanto a violência que os cria, este ato dos oprimidos, sim, pode inaugurar o amor.

Enquanto a violência dos opressores faz dos oprimidos homens proibidos de ser, a resposta destes à violência daqueles se encontra infundida do anseio de busca do direito de ser.

Os opressores, violentando e proibindo que os outros sejam, não podem igualmente ser; os oprimidos, lutando por ser, ao retirar-lhes o poder de oprimir e de esmagar, lhes restauram a humanidade que haviam perdido no uso da opressão.

Por isto é que, somente os oprimidos, libertando-se, podem libertar os opressores. Estes, enquanto classe que oprime, nem libertam, nem se libertam. Capítulo 1.

E o que dizer da seguinte passagem?

Será na sua convivência com os oprimidos, sabendo também um deles – somente a um nível diferente de percepção da realidade – que poderão compreender as formas de ser e comportarse dos oprimidos, que refletem, em momentos diversos, a estrutura da dominação.

Uma destas, de que já falamos rapidamente, é a dualidade existencial dos oprimidos que, “hospedando” o opressor cuja “sombra” eles “introjetam”, são eles e ao mesmo tempo são o outro. Dai que, quase sempre, enquanto não chegam a localizar o opressor concreta-mente, como também enquanto não cheguem a ser “consciência para si”, assumam atitudes fatalistas em face da situação concreta de opressão em que estão{22}.

O que Freire faz neste ponto, embora a alguns possa ter escapado, é lançar mão da teoria de Hegel da dialética opressor/oprimido que ele desenvolve com a figura do escravo e do seu senhor. Assim, fundado nos mesmos pressupostos em que banqueteou-se Karl Marx, Freire divaga sobre as convicções arraigadas nas pessoas que ele pretende salvar com sua pedagogia. Sim, ao mesmo tempo em que ele leva a mensagem de subverter a ordem da relação professor/aluno, mestre/discípulo, por reconhecer no educando sujeito ativo da sua transformação, ainda assim Freire não se esquiva de trabalhar a aceitação do seu evangelho socialista, assim se esquecendo de toda a ladainha sobre a autonomia do educando.

 

Continua...


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