Imagine
uma sala em que um católico e um protestante estão conversando.
Nessa
sala, a partir do menor incentivo, há uma chance bastante razoável
que a conversa se dirija para as diferenças entre as duas tradições
doutrinárias, tal qual já vimos acontecer diversas vezes em nosso
cotidiano.
Agora
imagine que nesta sala adentre um muçulmano. Neste caso, qual deverá
ser a configuração que os participantes chegarão no
desenvolvimento do diálogo?
Se
querem saber, o mais provável é que as divergências entre
católicos e protestantes sejam momentaneamente deixadas de lado, com
o fito de confrontar as diferenças ainda mais pronunciadas que
existem entre cristãos e muçulmanos.
O
curioso quadro mostraria católicos e protestantes, que até um
momento antes estavam se digladiando sobre a doutrina e liturgia,
agora unindo forças como se fossem cavaleiros cruzados em busca de
libertar a terra santa.
Essa
é a nossa tendência natural. A grosso modo, podemos dizer que nossa
espécie desenvolveu um julgamento que tem nos ajudado desde tempos
imemoriais a fazer alianças e manter afastados os indivíduos que
não demonstraram serem dignos de confiança.
Nosso
exemplo pode se desdobrar em muitas outras variáveis.
Já
que incluímos três devotos monoteístas, poderíamos fazer entrar
um hinduísta, hipótese na qual provavelmente as discussões se
concentrariam nas divergências entre os três primeiros e o
recém-chegado que cultua uma pluralidade incomensurável de deuses.
Curioso,
não? Se até a pouco nossos personagens estavam discutindo sobre a
única religião verdadeira, agora provavelmente veríamos os três
primeiros juntarem forças para demonstrar ao hindu a existência de
um único Deus, e que qualquer que diga o oposto estará pecando
contra os céus...
De
toda forma, o que fica claro nesse cenário ilustrativo é que
aqueles sujeitos que outrora foram considerados rivais
encontrar-se-ão dividindo uma mesma trincheira tão logo surja um
adversário que desafie os valores compartilhados pelo grupo.
Foi
assim que nossa espécie sobreviveu aos cenários mais desafiadores
nos últimos milhares de anos, de modo que esse comportamento já se
fez parte indissolúvel daquilo que somos.
Claro
que a mera constatação desses fatos não se traduz em um convite
para o completo abandono da individualidade em prol de um objetivo
imediato. No entanto, ignorar esse chamado do nosso subconsciente
para a defesa mútua pode vir a cobrar seu preço, e de fato temos
visto muitos exemplos dessa dinâmica.
Por
escrever justamente em meio a dois turnos eleitorais bastante
polarizados no Brasil, julgo inexistir melhor evidência dessa tese
do que os resultados das últimas eleições brasileiras. E não só
seus resultados em termos de distribuição de poder entre grupos
ideológicos distintos, mas também por todas as repercussões já
observadas no tecido social.
Para
melhor apresentar este argumento, terei de fazer uma pequena
digressão. Porém, ouso pensar que o resultado valerá a pena.
Nossa
primeira parada será no distante ano de 2006.
Quando
refletimos, parece fazer um século. O PT reinava absoluto em todas
as esferas de poder, e embora sofresse alguns solavancos ante o
escândalo do mensalão, o partido ainda conseguiria se equilibrar e
adiar alguns de seus revezes, que só viriam a ocorrer nos
julgamentos presididos por Joaquim Barbosa.
Mas
o que houve de tão especial no ano de 2006?
Certamente
muita coisa, mas o destaque vai para o PLC 122/2006, que ficou
conhecido à época como o PL da homofobia.
Como
você pode imaginar, o mundo era bastante diferente. O Orkut era um
bebê de dois anos, a internet engatinhava no Brasil e nomes como
Olavo de Carvalho apenas começavam a se popularizar. A própria
Crise do subprime ainda demoraria um ano até explodir
definitivamente.
Visto
esse cenário, faço uma pergunta aos senhores: Será que havia
alguma hipótese de enfrentamento entre a esquerda hegemônica que
controlava o congresso e uma militância conservadora ou de direita
praticamente neófita? E se houvesse alguma voz para confrontar o
Establishment, será que haveria alguma hipótese de vitória contra
tal inimigo no auge de seu poder?
Para
a surpresa de muitos, a marcha gramsciana encarnada no PLC 122 foi
confrontada e ao fim derrotada por uma oposição essencialmente
religiosa, que usou de seu peso tanto nas ruas em eventos como Marcha
para Jesus, como também na pressão exercida nos corredores de
Brasília. E tudo isso tendo como pano de fundo o temor dos cristãos
mais fervorosos com a hipótese de verem o estado interferir em suas
crenças e cultos.
Tanto
naquela época como hoje, ainda existem aqueles que alegam que os
temores dos cristãos sobre perseguição e interferência religiosa
eram infundados. Mas será mesmo?
No
discurso socialista, aquele projeto iria simplesmente defender uma
parcela desprivilegiada da sociedade, e os cristãos continuariam a
exercer sua liberdade de culto sem qualquer perturbação. No
entanto, lideranças como Silas Malafaia afirmavam que aquele projeto
de lei era apenas o primeiro passo que culminaria na imposição de
uma mordaça aos cristãos.
Por
isso agora, em meio a todas as censuras impostas pelo aparato
estatal, e com toda a pressão imposta pela cultura do cancelamento,
quem poderá dizer que Malafaia não estava certo em temer por sua
liberdade de culto?
A
lição que subsistia desse episódio era que o PT era poderoso, mas
seu poder não era ilimitado, e que havia um poder bastante
significativo que ele não poderia querer como inimigo. Contudo, o
confronto era inevitável.
Os
anos vindouros não foram realmente tumultuados, exceto por uma
militância conservadora crescente que já usava a internet para se
agrupar. Dessa safra surgiram alguns portais que ficariam conhecidos
como blogs apologetas, bem como nessa mesma época começaram a
surgir criadores de conteúdo na internet que não dobravam os
joelhos ao Establishment.
E
então chegamos a junho de 2013, onde uma manifestação inicialmente
estatista pedindo controle de preços e gratuidade no transporte
público desembocou em uma cacofonia de insatisfações sem fim, e
que marcou o início dos grandes protestos que em breve pediriam pelo
Impeachment de Dilma Rousseff.
É
claro que nada aconteceu da noite para o dia, e nesse meio tempo o PT
cometeu uma infinidade de erros que foram muito bem aproveitados pela
oposição.
Em
2013 o deputado Pastor Marco Feliciano elegeu-se presidente da
Comissão de Direitos humanos, provocando a fúria vermelha no
congresso e gerando diversas rachaduras na combalida estrutura de
poder petista, já que o antagonismo entre esquerda e bancada
religiosa passou a ser evidente até para quem só assistia ao jornal
nacional.
E
por falar em antagonismo, já nessa época era totalmente evidente o
clima de nós contra eles, ou polarização, como os jornalistas
gostam de chamar. Esse é um ponto importante a enfatizar, pois
demonstra que o clima de ódio não começou ontem, e foi parido pela
própria cúpula petista.
Na
sequência, a situação tornou-se ainda mais insustentável quando
os embates entre PT e a bancada evangélica respingaram na
controversa figura de Eduardo Cunha, que assumiria a presidência da
Câmara dos deputados em 2015, para o terror de Dilma Rousseff.
Tais
fatos demonstram que o abalo na hegemonia da esquerda não é algo
que começou ontem, e tão pouco que surgiu do nada sem qualquer
explicação, mas sim, é uma reação que tem tomado forma
gradualmente.
Por
isso, não chega a ser estranho que nas eleições de 2022 muitos
nomes associados a pautas tradicionais tenham se elegido, confirmando
uma tendência já vista em pleitos anteriores.
Essas
tendências foram personificadas na figura de Jair Bolsonaro, que
mesmo se filiando de última hora ao PL, conseguiu eleger 99
deputados para a sigla. Somados outros partidos aliados, a ala
bolsonarista já começa 2023 com 256 deputados, crescendo
exponencialmente quando comparado a 2018.
Já
as clássicas siglas de esquerda saíram de 138 deputados em 2018
para 128, confirmando a tendência anunciada. O próprio PT que
chegou a ter 91 cadeiras em 2002 apenas conseguiu 69 no último
pleito, e isso a custa da diminuição de vagas ocupadas por alguns
de seus aliados.
E
a cada variável analisada o quadro da esquerda só piora. Em 2018,
apenas 35 deputados federais de origem sindical foram eleitos, contra
51 deputados em 2014 e 83 em 2010. O número de senadores ligados ao
movimento sindical também encolheu – de nove eleitos em 2014 para
cinco em 2018.
Assim,
embora os números falem por si mesmos, darei aqui o meu diagnóstico.
Em
primeiro lugar, nunca foi tão positivo como estratégia política
associar-se com valores tradicionais e conservadores. Embora tal não
seja uma novidade absoluta, fato é que agora está claro que não
basta aos marxistas decorarem um versículo bíblico para serem
aclamados como aliados das igrejas, e indiretamente, do seu
eleitorado.
Em
segundo lugar, mas não menos importante, todas as evidências
mostram que o grosso do eleitorado não tem a menor preocupação com
progressismo, gênero neutro, veganismo e outras pautas identitárias.
Sim, alguns caciques destes segmentos tem apelo midiático, a exemplo
de Guilherme Boulos, mas para cada eleitor que abraça o PSOL existem
muitos mais que estão dispostos a comprar uma camisa da CBF e se
fazer ouvir no próximo feriado de 07 de setembro. Note que o PSOL é
capaz de ter votação expressiva pra alguns cargos legislativos, mas
sempre mostrou dificuldades em conseguir votos para o executivo.
Essa
é uma constatação que a esquerda ignora, e devemos comemorar tal
fato. Enquanto eles permanecerem embriagados na própria retórica e
no senso de importância de seus pensadores e formadores de opinião,
eles continuarão acreditando serem os autênticos representantes dos
anseios do povo.
Em
terceiro lugar, na esteira da rejeição ao petismo vimos surgir
alguns novos atores na política nacional, como o partido Novo e o
MBL. Todavia, os resultados eleitorais recentes demonstram cabalmente
que seu papel foi visivelmente eclipsado pelo bolsonarismo.
Eis
pois o diagnóstico: a força e relevância que um dia tais grupos
conquistaram se derivava exclusivamente da guerra cultural contra o
socialismo. todavia, entre eles haviam muitos que não queriam ser
rotulados de radicais pela elite do Leblon, e preferiram sacrificar
seu vínculo com o eleitorado em nome de um temor caipira de serem
associados com o fundamentalismo e teorias da conspiração.
Para
a surpresa de ninguém, o senso de sobrevivência dos homens comuns
desse país os levou a querer formar fileiras com homens que (embora
denominados capiau) decidiram ficar na parede de escudos ignorando as
zombarias das Vera Magalhães, dos João Dorias, dos Atila Iamarino e
outros da mesma estirpe.
Na
esperança de ter um lugar à mesa com os acadêmicos e a elite
refinada, estes covardes preferiram não sujar suas mãos delicadas
nas trincheiras da guerra cultural, e como resultado hoje são
desprezados tanto por conservadores como por progressistas.
E
não estamos falando de um fato inédito na política. É um fato
bastante reconhecido que ao chegar ao poder, muitos esquerdistas
históricos debandaram do petismo quando ele começou a se aliar com
caciques da política vigente, optando por fundar novos partidos que
tinham a alegada missão de manter a pureza da ortodoxia marxista.
Da
mesma sorte, hoje muitos filiados ao Novo contemplam o fracasso
eleitoral e se consolam no discurso autopiedoso de estarem defendendo
o verdadeiro liberalismo. Contudo, mesmo que esse debate faça
sentido para uma elite acadêmica, seu eco entre o eleitorado é
quase inexistente.
Então
estamos afirmando que as discussões intelectuais devem ser
abandonadas? Certamente que não. Porém, sequer é necessário um
partido para se ter uma roda de discussões sobre a alta cultura, e
esse é um ponto que a biografia de Olavo expressa muito bem.
Por
isso é que hoje o Brasil não possui espaço para uma terceira via,
nem para a vã retórica academicista. E quem não se der conta disso
fracassará.
Para
finalizar, devemos reconhecer que o ponto fora da curva nestas
discussões é o próprio Lula.
Por
um lado, ele entendeu que a política é feita muito mais de
Maquiavel do que de Karl Marx, e vem aplicando tal sagacidade com
bastante sucesso nas últimas décadas.
No
entanto, Lula é um tipo tal qual um Getúlio Vargas, e cedo ou tarde
deixará a vida para entrar na História. Ganhando ou perdendo em
2022, dificilmente ele conseguirá disputar uma nova eleição em
2026, e anteriormente ele já mostrou surfar muito melhor como
candidato do que como puxador de votos.
Então
sim, no cenário mais imediato Lula realmente é um problema, mas que
em breve deixará de representar preocupações.
Assim
sendo, por um lado temos um conservadorismo em ascensão, ilustrado
por todos os fatos que trouxemos até aqui.
Por
outro lado temos Lula, o último líder de uma ordem em declínio, e
que provavelmente deixará órfã a esquerda pelos próximos
cinquenta anos.
Por
todo o exposto, meu parecer é que não se mostra difícil responder
se deveríamos realmente unir forças com algum dos lados que se
digladiam nessa guerra cultural. Bem como se mostra mais do que
evidente quais destes devem ser considerados aliados naturais ou
inimigos irreconciliáveis.