Friday, March 1, 2019

Os sistemas de justiça e as falhas do modelo estatal.

    No texto anterior começamos a verificar que os diversos conflitos humanos demandavam alguma forma de chegar à resposta final sobre quem poderia exercer a propriedade dos recursos escassos. Além do mais, até mesmo o desenvolvimento da agricultura e outras inovações não eram sequer possíveis de se imaginar sem definições sobre direitos de propriedade.
    Como sabemos, a partir de certo ponto o nosso ancestral pôde se antecipar ante as necessidades vindouras, planejando e separando parte da colheita presente para manutenção futura e para o plantio da próxima estação, mas ele certamente não conseguiria realizar tal empreendimento sem que antes se estabelecessem distinções sobre lícito e ilícito, sobre quem deve ter a faculdade de decisão final sobre o uso dos bens.
    Sem um acordo a cerca desses limites, nem ao mesmo faria sentido estocar grãos para eventos futuros, principalmente se você não pode reivindicar propriedade exclusiva sobre estes bens.

    Uma parte dos nossos problemas restou resolvida, pois agora existem ferramentas pelas quais eu poderia exigir de qualquer outro que não consuma meus grãos, e poderia demandar esse indivíduo perante os julgadores da nossa sociedade. Porém, um problema persistente nestas tentativas de se estabelecer um sistema de justiça acabava por ser a faculdade que o julgador teria de decidir de forma arbitrária e flagrantemente injusta. Se o dito julgador também tivesse o monopólio do uso da força, se ele fosse rei, por exemplo... a a ameaça do poder despótico era factível.
    Aqui jaz a contradição. No entender de alguns filósofos contratualistas, a ameaça de violência constante por parte de seus pares levou o homem a abrir mão de parte da sua autonomia para atribuir a uma autoridade central o poder de resolução dos conflitos.
    Existem porém muitos problemas com essa tese. Em primeiro lugar, mesmo que houvesse um contrato, seria ilógico reconhecer que o ancestral de dezenas de milênios atrás teria poderes para decidir por todos os descendentes até a atualidade. Em outras palavras, o dito contrato social deveria ter a anuência expressa de cada um dos indivíduos que nascessem para permanecer válido. Em segundo lugar, mesmo os adeptos desta tese tem consciência de que o contrato social é uma ficção, não havendo o mínimo fulcro na realidade que sustente tal proposição.
    Ainda que não existissem as dificuldades acima, a contradição que ainda persiste é insuperável. A consequência do contratualismo é a seguinte: já que eu quero evitar ser vítima de expropriação dos meus bens e violência contra a minha pessoa, então eu deveria atribuir a uma instituição super poderosa os poderes para efetivar atos de que eu temo ser alvo, quais sejam: expropriação dos meus bens e violência contra a minha pessoa.
    Por hora nos basta acrescentar que graças a estes mesmos poderes estatais, muitos foram os episódios vergonhosos protagonizados pelas suas milícias, incluindo invasões, saques, estupros praticados como arma de guerra e assassinatos em massa. Mas piora, visto que no século XX a barbárie perpetuada pelo estado atingiu níveis de tal magnitude que o pesquisador Rudolph Joseph Rummel acabou por cunhar um termo inédito, o democídio, para ter uma nomenclatura mais adequada para expressar os massacres que o estado praticava sistematicamente contra povos inteiros durante o século passado, a exemplo das milhões de mortes resultantes do nazismo ou de ações soviéticas na Ucrânia.
Em citação as palavras do próprio Rummel (2013):

"No total, os regimes marxistas assassinaram aproximadamente 110 milhões de pessoas de 1917 a 1987.  Para se ter uma perspectiva deste número de vidas humanas exterminadas, vale observar que todas as guerras domésticas e estrangeiras durante o século XX mataram aproximadamente 85 milhões de civis.   Ou seja, quando marxistas controlam estados, o marxismo é mais letal do que todas as guerras do século XX combinadas, inclusive a Primeira e a Segunda Guerra Mundial e as Guerras da Coréia e do Vietnã".

    Obviamente, as modalidades de arbitrariedade perpetuadas pelo estado não estão restritas aos cenários de guerra, e são muitas as hipóteses de exercício do despotismo estatal mesmo em tempo de paz. No contexto brasileiro, por exemplo, a tributação que fica em torno dos 37% é certamente razão para contestar a magnitude dos poderes do estado. Ademais, caso inexistisse sonegação ou nenhuma das brechas legais que advogados encontram nas trincheiras tributárias, a carga tributária efetiva do Brasil poderia chegar à cifra hedionda de 60%.

    Acrescente-se a isso a horrenda distância que existe entre o tratamento legal dos detentores do poder estatal e as pessoas comuns, os que verdadeiramente sustentam tal arranjo. A execrável quantidade de privilégios da classe política nos fornece uma triste corroboração para o nosso exemplo, não somente nos privilégios de ostentação, como salários e regalias, mas principalmente privilégios processuais, que na prática basicamente impedem que políticos sejam punidos por seus atos mais condenáveis.

    E qual a relação de todo esse cenário nefasto com o tema do libertarianismo?

    De fato, toda a apresentação até aqui visa colocar o leitor a par de um incômodo conceito: o estado não é, nunca foi nem jamais será um promotor de justiça.
    Mas como conciliar tudo o que foi dito sobre o estabelecimento de direitos de propriedade e nossa presente declaração?
    Como ao mesmo tempo conciliar o tipo de segurança jurídica que qualquer camponês necessita para semear o seu trigo, com as abundantes evidências de que o estado é o maior protagonista das piores violações dos direitos naturais?

    Existe uma insuperável contradição na conceituação do estado como defensor da propriedade privada. Recordando o que foi explicado sobre a tese contratualista, o sistema se perpetua desde que os homens pensem que só o estado possui aptidão para a manutenção dos direitos de propriedade, e para essa suposta finalidade é que o estado reivindicaria para si próprio o poder monopolístico de burlar os direitos de propriedade dos seus súditos.
    A subsistência do estado depende da relativização dos direitos individuais e da redistribuição dos títulos de propriedade que os indivíduos possuem. A própria tributação consiste no ato de subtrair propriedade de outrem mediante violência ou grave ameaça, ações estas que o estado proíbe a qualquer particular ao mesmo tempo em que institucionaliza e se autoriza a praticar.

    Positivistas de um modo geral tem a tendência de redarguir dizendo que tributar e roubar são ações totalmente diferentes. Dizem eles que um é ato lícito previsto no código tributário, enquanto que outro é crime previsto pelo código penal.
    Isso contudo não afasta a constatação já observada nos parágrafos anteriores, de que a distinção de lícito e ilícito perante o estado se dá exclusivamente por decreto. Para o estado positivista, mediante decreto é possível definir que Paulo pode iniciar agressão contra João , mas que João não pode iniciar agressão contra Antônio.
    Em outras palavras, para poder responder se deve-se ou não condenar a agressão, os positivistas deverão antes consultar uma norma que pode estar positivada na lei 1234, artigo 22, inciso III, alínea a, para então concluir se é correto ou não agredir.

    Neste momento o leitor pode lançar a seguinte observação: O rei de fato pode reivindicar a propriedade de terceiros, mas o rei estabelece o sistema jurídico que possibilita a estabilidade e o progresso, então é útil que o rei possa tributar.
    Se for essa sua indagação, saiba que seu posicionamento é conhecido pelo meio libertário como a posição utilitarista e que existem abundantes refutações para essa corrente. Utilitarismo de forma sucinta é aquela corrente que defende uma espécie de estado mínimo, posição que se aproxima da corrente denominada de minarquismo. Para um minarquista ou utilitarista, até pode existir o problema da ética, e a tributação pode até ser reconhecida como agressão, mas para estes a agressão é necessária, contanto que seja mantida em níveis mínimos.
    Claro que existem outros níveis de utilitarismo que podem até maximizar a agressão. O modelo keynesiano, por exemplo, é um dos modelos que pode ser identificado com o utilitarismo, vez que para seus defensores a redistribuição de títulos de propriedade pode ser justificada quando vier acompanhada de resultados favoráveis no PIB e na balança comercial.

    Nossa posição ante o utilitarismo e o minarquismo pode ser resumida nos seguintes apontamentos:
* historicamente os estados mínimos tendem a se tornar estados máximos;
* nenhum monopólio jamais se comprovou eficiente, e nada faz crer que o monopólio do uso da força seja exceção;
* o critério utilidade não é capaz de oferecer um sistema jurídico justo e confiável. Quão entusiasticamente as pessoas de séculos atrás defenderiam institutos nefastos como a escravidão baseando-se exclusivamente em utilidade?
* por mais que nenhum estatista acredite que o estado seria eficiente em tarefas como fabricação de celulares e TV's de plasma, estatistas creem na ficção que áreas mais essenciais como justiça devem ser monopólio do estado, por mais que este nunca tenha superado a eficiência da iniciativa privada em qualquer ramo.

    Ora, conquanto os argumentos em prol de soluções não estatais de resolução de conflito demandem um texto a parte, consignamos que existem inúmeras ferramentas que concorrem e até superam o estado nesta tarefa. Como ilustração, temos a justiça desportiva (que é 100% privada); a arbitragem e mediação; os sistemas online de reputação e feedback que encaminham a resolução de conflitos, tais como o "reclame aqui"; além dos organismos de resolução de conflitos das próprias organizações privadas como o mercado livre, que opera a função de árbitro em demandas envolvendo seus compradores e vendedores.
    Na prática, se o indivíduo procura os serviços do "reclame aqui" para resolver algum problema de atraso de uma mercadoria, por exemplo, esse indivíduo provavelmente estará numa situação muito melhor quando comparado a um indivíduo que estivesse recorrendo aos mecanismos estatais diante do mesmo problema.

    Enfim, postos estes breves apontamentos a cerca do utilitarismo, retomemos o desenvolvimento do raciocínio sobre o positivismo jurídico.

    O positivismo jurídico, tal como verificamos a pouco, é um sistema que se propõe a definir normas e condutas por decreto. Sendo mais específico, para autores positivistas como Hans Kelsen o aplicador do direito não deve estar atrelado a conceituações de justiça ao decidir sobre uma determinada lide. Para melhor representar este conceito consignamos aqui o próprio pensamento de Hans Kelsen em citação literal:

"o direito positivo vale enquanto tal, é dizer, da sua objetividade, da norma posta, retira a sua validade subjetiva; a sua validade tem-se como regra posta, pertencente ao próprio sistema. A norma entrou com regularidade no sistema jurídico, como tal ela retira sua validade subjetiva. Seria desnecessário pedir a sua adequação a um ideal de justiça". KELSEN (2003) apud NOVAES (2005) P.1.

    Graças às óbvias limitações do positivismo jurídico, até mesmo as nações envolvidas na segunda guerra tiveram que voltar sua atenção para a formação de um conceito correto de justiça que não fosse dependente das construções jurídicas formais. Isto por que durante os julgamentos do tribunal de Nuremberg foram confrontadas as argumentações dos nazistas, os quais  justificavam todas as agressões e crimes da II guerra como decorrentes do estrito cumprimento do dever legal,
    Fatalmente, o argumento dos nazistas poderia bem ter prevalecido se fossem tomados apenas os mecanismos processuais positivistas, mas não foi o que sucedeu, e o episódio marcou uma reviravolta na cultura jurídica estabelecida que desde então passou a relativizar a doutrina jurídica formal, e conceitos como jus naturalismo até chegaram a ganhar alguma importância para a hermenêutica, mas não tanto quanto deveria, deve-se admitir, vez que ainda persiste certa dificuldade entre os juristas para estabelecer de forma mais ou menos consensual o conceito de justiça sem apelar para códigos e decretos.

    Até aqui constatamos que a nossa espécie dependeu intrinsecamente de um sistema de justiça para a resolução de conflitos, mas que a solução oferecida pelo estado tinha e tem diversos problemas insuperáveis, de forma a ter sido observado a oferecer injustiça no lugar de justiça, conflitos em lugar de  solução de conflitos, desrespeito sistemático a direitos em lugar de sua proteção.


Esse texto se encerra por aqui. Posteriormente desenvolveremos o argumento do porquê da ética libertária ser a única ética justificável e compatível com os seres a que se destina, os humanos, e demonstraremos que ela é a única que satisfaz o requisito da resolução dos conflitos de forma universal e objetiva.



Notas
MAUAD, João Luiz. Você sabe qual é a nossa carga tributária potencial? Instituto Liberal. <https://www.institutoliberal.org.br/blog/voce-sabe-qual-e-a-nossa-carga-tributaria-potencial-ou-que-futuro-nos-aguarda/> Acesso em: 01 de março de 2019.

RUMMEL, R.J. Marxismo: a máquina assassina. Instituto Mises Brasil. <https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1584> Acesso em: 28 abr 2013

SILVA, Leandro Novais e. A não-idéia de Justiça em Hans Kelsen. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 837, 18 out. 2005. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/7438>. Acesso em: 28 fev. 2019.

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