Thursday, May 16, 2019

Cultura pop, Raul Seixas e patrulha ideológica.

    Há um fenômeno bastante comum em meio aos movimentos políticos idealistas que querem a todo custo incendiar a ordem vigente. Trata-se de um sentimento de urgência, uma necessidade de mudar o mundo para ontem, geralmente colocando a mudança como a meta em si sem dar atenção para os resultados realizáveis. Tal se deu na revolução francesa, na soviética, na revolução cultural da China e em muitas outras que compartilham o mesmo gene. Talvez o termo que melhor defina esse fenômeno seja revolucionar por revolucionar.
    Hoje um dos campos mais visados por esses arquitetos das transformações sociais é o campo do entretenimento. Em prol da ideologia, estabelecem-se critérios daquilo que é publicável ou não, consumível ou não, num cenário onde qualquer comparação com 1964 passa a ser bem mais que liberdade poética.
    Ao fim da ditadura militar, quem chegou a trazer essa ideia da mídia como a nova força responsável pela censura foi justamente o saudoso Raul Seixas, que aliás era um indivíduo que podia falar de censura com muito conhecimento de causa. Contemple a letra de uma de suas últimas gravações e então observe o grau de insatisfação que o cantor manifestava àquele tempo:

O Best Seller do momento
É um livro agourento
Que ninguém entende mas
Todo mundo quer ler
Ler pra ter cultura
e como acabaram com a censura
A mídia agora é o nosso Aiatolá
***
Ah, mas não se importe não
No final o bandido casa com o mocinho
E o Best Seller vai pra milésima edição
***
Se já não existe inteligência
Então vamos bater continência
pra esse indício De resquício militar
(um, dois, três, quatro)
E como é tudo a mesma merda,
Antes que chegue a vida eterna
Eu vou pedir asilo ao Paraguai
(trechos da música Best Seller presente no último disco de Raul Seixas e Marcelo Nova - A Panela do Diabo 1989).

    Além de contestar o papel da mídia como o Aiatolá de 1989, a angústia de Raul quanto ao controle ideológico de suas obras foi representada em diversas letras de sua carreira em diversos momentos diferentes, antes ou depois da ditadura. Outro exemplo é o protesto na famosa letra do carimbador maluco de 1983:

Plunct Plact Zum
Não vai a lugar nenhum!!
Tem que ser selado,
registrado,
carimbado,
avaliado,
rotulado
se quiser voar!
Se quiser voar.

    Graças a outras formas de controle ideológico, o fato de ter saído de uma censura governamental não resultou em um estado satisfatório para esse pioneiro do rock. Tendo isso como pano de fundo, pergunta-se: -- Como então ele avaliaria o atual grau de imposição da militância politicamente correta na mídia atual?
    Para que não restem dúvidas sobre a condição de patrulha ideológica que vivenciamos, comecemos por exemplificar nosso raciocínio com uma polêmica recente envolvendo a atriz Scarlett Johansson. Rub & Tug seria um filme que tinha em seu enredo um protagonista trans e que seria interpretado pela mesma intérprete da viúva negra.
Parecia uma fórmula que agradaria os mais exigentes de todos os mundos... havia um protagonista trans... havia uma atriz da classe AAA de Hollywood que atuou numa equipe com um legado ainda indizível na cultura cinematográfica... tudo parecia muito bom, mas não para os patrulheiros ideológicos. Para estes o personagem deveria ser interpretado por um ator também trans.
    O resultado? Tão massiva foi a pressão que Scarlett acabou se desligando da produção e pouco tempo depois já nem se sabia se tais desventuras não resultariam no próprio cancelamento do filme.
    Encaremos a realidade. Com a participação de Scarlett Johansson o filme realmente tinha um absurdo potencial. (falo como jeek consumidor de blockbusters). Mas eu com certeza não seria o único, por que eu conheço mais gente da minha estirpe, esse público nerd pra quem qualquer filme ganha o dobro do Hype só por ter a participação de qualquer um dos vingadores. O público assistiria, a produção lucraria, sequências poderiam ser pensadas, o tema seria visto com interesse pelos concorrentes... a militância jamais reconhecerá, mas a celeuma foi um tiro no próprio pé.
    O cinema nacional por sua vez não fica longe dessas ladainhas. Veja-se a recente confusão sobre a atriz Taís Araújo no filme da "cientista" Joana D'arc Felix. A história da mulher pobre que virou PhD em Harvard (EUA), teve de ser abortada por conta de um descontentamento em comunidades, grupos e redes sociais. Pessoas alegaram que o tom de pele de Taís seria mais claro do que o da cientista, e que uma outra atriz mereceria o papel.
    Mas veja que impressionante... no decorrer da presente semana esse projeto também foi pras cucuias. Segundo apurou o jornal Estado de São Paulo, Joana D'arc teve formação exclusiva no Brasil, nunca fez um pós doutorado e jamais teve  um diploma de Harvard. Tais constatações em nada diminuem Joana como profissional, mas certamente comprometem a ideia de usá-la como modelo para pessoas pobres que pretendam estudar em Harvard.
    Soma-se a esse episódio alguns outros que já ocuparam as atenções da mídia nacional, como a importantíssima discussão da etnia de Carlos Marighella, e então a conclusão que se impõe é que a esquerda está divorciada do mundo real e atualmente se ocupa de discutir o sexo dos anjos.
    Curiosamente, o imediatismo e falta de paciência são os verdadeiros inimigos da esquerda, e não um inimigo imaginário chamado fascismo. A história traz lições preciosas contra esse ímpeto revolucionário juvenil. Tal qual os franceses aprenderam, cortar a cabeça de um monarca pode ser o estopim para que surja  um napoleão ainda mais despótico.
    Ao tentar forçar uma agenda para ontem, os próprios social justice warriors possibilitam que surja uma reação com igual intensidade em sentido contrário. E não é justamente isso que está acontecendo ao redor do globo com a ascensão de bandeiras conservadoras?
    Enfim, nada nesses apontamentos conduz à conclusão de que não devem existir personagens gays na cultura pop, ou que as "minorias" devem ser esquecidas pelo bem de personagens arquetipicamente consolidados como o homem do cavalo branco que salva a donzela em apuros. O problema não reside em fazer ou não, mas como fazer.
    Um exemplo bem ilustrativo de minorias que são bem inseridas e com bons resultados vem dos livros de Percy Jackson do autor Rick Riordan, do qual sou grande fan. A título de exemplo, no universo de Riordan já fomos apresentados a Nico di Angelo, um personagem filho de Hades que tem um romance com um outro semideus filho de Apolo. Aliás, o próprio Apolo é retratado como um deus que já experenciou vários romances ao longo das eras indistintamente com homens e mulheres. Na saga dos deuses nórdicos do mesmo autor também somos apresentados a uma filha de Loki que oscila entre os dois sexos, fora outra protagonista adepta da religião islâmica que passa por várias dificuldades por ter que vivenciar suas aventuras durante o mês do Ramadã, experimentando uma certa vulnerabilidade nas batalhas devido ao jejum.
    Mas vejam só que interessante. A primeira vista os conservadores mais desavisados podem achar essa descrição lotada de lacração até o talo, mas todos esses elementos funcionam e estão muito bem posicionados dentro daquele universo. Como mencionado, condições dos personagens como a necessidade de jejuar no Ramadã ou a sexualidade (Originalmente na mitologia nórdica Loki também era um deus metamorfo de sexualidade fluída), são trazidas ao enredo servindo a um propósito que enriquece a história.

    O mundo mudou. Hoje Jim Parsons recebe a bagatela de um milhão de dólares por cada episódio de Big Bang Theory, e o fato do ator ser gay não impediu que além do salário milhonário ele fosse o protagonista do maior sucesso de audiência da TV americana dos últimos 12 anos, com números que batem inclusive Game of Thrones.
    O ponto é... ao passo que vemos de um lado uma militância de esquerda insatisfeita por que uma atriz não tem tanta melanina como eles gostariam, ou qualquer problematização hiperbólica que eles gostam, também há por parte de uma ala direitista a errônea percepção de que qualquer inclusão de uma minoria tem que ser denunciada como tentativa de patrulha esquerdista. Da minha perspectiva tratam-se de grupos equivocados que fariam melhor em tentar avaliar a qualidade de um produto pelo conjunto da obra e não exclusivamente por critérios políticos prefixados.
    Se havemos de discutir a sério questões como as liberdades de pessoas gays, que ao menos se reconheça o óbvio: o bem estar de um homossexual aumenta exponencialmente tanto mais o país que ele vive se aproxime do liberalismo. Cuba está lá que não me deixa mentir.
    Enfim, essas breves considerações estão longe de esgotar o assunto. Tenho esperança de com esse texto ter causado reações despudoradas tanto à direita como à esquerda.

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