Wednesday, June 12, 2019

A mitologia do juiz Buda e o hack de Sérgio Moro.

    Instalou-se nos últimos dias uma polêmica a cerca da legalidade das ações do juiz Sérgio Moro na condução do processo que culminou com a prisão do ex-presidente Lula. Nessa altura presume-se que o leitor esteja familiarizado com o assunto, portanto não nos deteremos em maiores explicações.
    Nossa proposta consiste em tecer considerações sobre a legalidade e eticidade dos atos trazidos a público, buscando ao longo do texto desfazer certos equívocos que surgem quando o indivíduo não tem mais que uma noção precária do funcionamento das instituições e da aplicação do direito.

A mitologia do juiz Buda.

    A confusão que ousamos denominar de mitologia do juiz Buda é um problema inerente aos primeiros anos de contato do estudante com o universo jurídico. Presume-se a partir de certas leituras e determinados trechos de lei que o juiz é uma figura misticamente apartada da própria realidade, desinteressado e alheio aos acontecimentos do universo mortal. O equívoco do juiz Buda apresenta um ser que transcendeu o universo fenomênico e que por ostentar tais qualidades teria a faculdade de julgar sem qualquer animosidade um processo envolvendo um estuprador, um assassino em série ou um presidente da república.
    Há diversas razões, legais ou mesmo de praxes, que atestam que essa figura imaginada é qualquer coisa menos um personagem de carne e osso que transita nos corredores dos prédios do poder judiciário. Por reconhecer as muitas influências que podem condicionar a decisão do julgador é que os códigos já de longa data preveem hipóteses de afastamento do juiz de suas funções, chamadas hipóteses de suspeição ou impedimento, que quando se configuram devem fazer que a lide seja remetida para outro magistrado.
    Para além dessas previsões que desautorizam a decisão de um magistrado impedido ou suspeito, também temos hipóteses que levam o juiz a praticar atos que, de primeiro momento, poderiam ser considerados estranhos ao regular exercício do poder jurisdicional, inerte e equidistante. São os atos que o juiz pode praticar no curso do processo sem a provocação de qualquer das partes, também conhecido como atos "ex officio".
    O CPC/73 chegava a permitir até que o juiz, a despeito de nenhuma provocação das partes, iniciasse de ofício um processo de inventário (partilha de bens de indivíduo falecido). Contanto essa possibilidade não vigore nos últimos 04 anos, vejamos alguns exemplos do que ainda é permitido, (ou até obrigatório), no que concerne aos atos praticados de ofício pelo juiz no CPC/2015:

Art. 63, § 3o: Antes da citação, a cláusula de eleição de foro, se abusiva, pode ser reputada ineficaz de ofício pelo juiz, que determinará a remessa dos autos ao juízo do foro de domicílio do réu.
Art. 64, § 1o: A incompetência absoluta pode ser alegada em qualquer tempo e grau de jurisdição e deve ser declarada de ofício.
Art. 81: De ofício ou a requerimento, o juiz condenará o litigante de má-fé a pagar multa, que deverá ser superior a um por cento e inferior a dez por cento do valor corrigido da causa, a indenizar a parte contrária pelos prejuízos que esta sofreu e a arcar com os honorários
Art. 370: Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito.
Art. 385: Cabe à parte requerer o depoimento pessoal da outra parte, a fim de que esta seja interrogada na audiência de instrução e julgamento, sem prejuízo do poder do juiz de ordená-lo de ofício.
Art. 421.  O juiz pode, de ofício, ordenar à parte a exibição parcial dos livros e dos documentos, extraindo-se deles a suma que interessar ao litígio, bem como reproduções autenticadas.
Art. 461: O juiz pode ordenar, de ofício ou a requerimento da parte: I – a inquirição de testemunhas referidas nas declarações da parte ou das testemunhas; II – a acareação de 2 (duas) ou mais testemunhas ou de alguma delas com a parte, quando, sobre fato determinado que possa influir na decisão da causa, divergirem as suas declarações.
Art. 481: O juiz, de ofício ou a requerimento da parte, pode, em qualquer fase do processo, inspecionar pessoas ou coisas, a fim de se esclarecer sobre fato que interesse à decisão da causa.
Art. 536. No cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer ou de não fazer, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento, para a efetivação da tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente, determinar as medidas necessárias à satisfação do exequente.

    Estes artigos são meramente exemplificativos. Contudo, o leitor mais exigente poderia pensar que essas exceções são fruto exclusivo da legislação processual civil, e como trouxemos a discussão baseada na operação lava jato, precisaríamos tratar da figura do juiz Buda nos procedimentos do universo criminal. Um juízo apressado poderia fazer crer que nesses casos o juiz estaria em condições idealizadas e muito diferentes de um processo comum, e que o juiz não teria a prerrogativa de, por exemplo, ordenar a produção de provas contra o réu que ainda conta com a presunção de inocência, mas nada poderia estar mais longe da realidade.
    Tragamos alguns exemplos: O Código de Processo Penal em seu artigo 574 instituiu a figura do Recurso de Ofício, ao estabelecer que os recursos serão voluntários, excetuando-se os seguintes casos, em que deverão ser interpostos, de ofício, pelo juiz: a) da sentença que conceder habeas corpus; b) da que absolver desde logo o réu com fundamento na existência de circunstância que exclua o crime ou isente o réu de pena, nos termos do art.411.
Prevê ainda o referido diploma legal que "da decisão que conceder a reabilitação haverá recurso de ofício (art.746 do CPP).
A Lei n.1521 de 1951, em seu artigo 7°, elencou mais uma hipótese da ocorrência obrigatória do Recurso de Ofício ao impor que "os juízes recorrerão de ofício sempre que absolverem os acusados em processo por crime contra a economia popular ou contra a saúde pública, ou quando determinarem o arquivamento dos autos do respectivo inquérito policial."
Ademais, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de que "não transita em julgado a sentença por haver omitido o recurso ex-oficio, que se considera interposto ex-lege" (Súmula 423 do STF).
Deste modo, obrigatoriamente, haverá o reexame necessário pelo Tribunal de Apelação, sempre que houver uma sentença que conceder uma ordem de habeas corpus; uma decisão que conceda a reabilitação; uma absolvição em processo por crime contra a economia popular ou a determinação do arquivamento dos autos do respectivo inquérito policial.
    Especificamente quanto a produção de provas, embora o MP seja o titular da ação penal, este não tem a prerrogativa de coletar certos tipos de evidência, como ocorre no caso da interceptação telefônica. Nestes casos quem deve decidir é o poder judiciário, que nesta oportunidade não terá como se esquivar de fazer um juízo prévio sobre as circunstâncias narradas a cerca do réu e da atividade supostamente criminosa.
    Também não é menos que polêmico o episódio em que pode o magistrado discordar do arquivamento da ação penal. Em casos assim, quando o Ministério Público (que tradicionalmente é o órgão acusador) resolve não mais pleitear a condenação do réu, deve pedir permissão para o poder judiciário para que possa arquivar o processo regularmente. O juiz todavia pode discordar do arquivamento e adotar providências para que o processo criminal prossiga.
    Mais grave do que os apontamentos acima e completamente a contrario sensu, o art. 385 do Código de Processo Penal dispõe:
Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada.
    Colocando então em perspectiva os dispositivos aqui apontados, podemos dizer que num processo penal o juiz pode:
* discordar do arquivamento da ação penal e praticar ato pela sua continuidade;
* determinar a produção de prova técnica, testemunhal ou outra pertinente mesmo sem provocação das partes;
* analisar o pedido de produção de provas do MP, estabelecendo na ocasião um juízo de provabilidade/possibilidade quanto aos aspectos de autoria e materialidade, mesmo à revelia do réu que é legalmente inocente;
* condenar, ainda que contrariamente ao posicionamento do MP o réu em acusação penal, podendo imputar-lhe circunstâncias mais gravosas que as estabelecidas pela acusação.

    Desde tal leitura percebe-se quão frágil é a construção ficcional da figura do juiz Buda, que se desvanece quanto mais vamos conhecendo o sistema legal e processual.
    Não obstante as normas aqui citadas (e muitas outras que passamos ao largo), muito do que é observado como praxe no universo jurídico também refuta a figura imaginária do juiz Buda. Veja-se por exemplo as diversas reuniões ocorridas nos tribunais superiores com políticos e seus representantes, como a que aconteceu na reunião do ministro Barroso com o procurador municipal de Belo Horizonte, episódio famoso pelo fretamento de um jatinho pela prefeitura de BH para transporte do jurista.

“Quod non est in actis non est in mundo”, o que não está nos autos não está no mundo. Este é um velho brocardo que vem do Direito Romano e que é adotado nos Judiciários de Estados democráticos. Só essa regra já serviria para colocar em cheque todos estes pomposos encontros, as vezes regados a lagosta e Whiskey 18 anos, pois os argumentos jurídicos podem ser conhecidos na integralidade pela leitura das peças por parte do julgador. Os tais encontros, no entanto, são inclusive regulamentados, e o advogado pode reclamar por violações de prerrogativas se não for atendido pelo juiz em seu gabinete. Alguns dos advogados contratados pelos mais notórios corruptos tem como diferencial o bom trânsito entre os gabinetes de ministros, aspecto que jamais teria de ser considerado já que o defensor poderia apresentar todas as peças de seu processo em um computador de lan house com internet discada.

    Postas estas considerações, pergunta-se: seria razoável argumentar contra a imparcialidade do juiz Sergio Moro por que este não corresponde ipsis litteris à figura ficcional do que aqui chamamos juiz Buda? Deveria então uma força tarefa que envolveu polícia federal, ministério público, receita federal e judiciário restar prejudicada face uma concepção totalmente equivocada de um juiz ficcional semi divino que não é mais que uma leitura rasa da norma e do universo natural?
    Parece-nos a tentativa de macular a figura do julgador não mais que o ato desesperado de grupos afoitos pela impunidade, os quais grupos chegam ao ponto de articular Habeas Corpus quando há julgador plantonista alinhado politicamente com a figura do réu.
    Representa ainda uma notória contradição que os supostos entusiastas da legalidade se valham neste caso de uma inequívoca demonstração de ilegalidade, (a invasão de comunicação privada), sem mencionar a precária situação jurídica do jornalista que parece violar disposições expressas do estatuto do estrangeiro. Note-se que tais apontamentos estão levando em conta uma discussão norteada pela legislação positivista, portanto um parecer técnico, o qual não se pretende uma declaração de endosso ao planalto para que persiga o responsável pelos vazamentos.
    Do ponto de vista libertário, muitas das considerações aqui são impertinentes... legalismo puro. No entanto, como a discussão em voga no país se concentra na legalidade dos atos, é uma oportunidade conveniente para que se teçam considerações como estas apresentadas no texto, ainda mais sabendo que as implicações jurídicas podem ter diversas repercussões políticas e econômicas que os amantes da liberdade fariam bem em considerar.
    Por fim, não estamos diante de um embate novo. Desde o processo do mensalão que os meliantes buscam desmerecer o acusador, o magistrado e todos os envolvidos no processo criminal. Joaquim Barbosa nesse aspecto é um dos melhores exemplos de como a prática é corriqueira.

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